Brasil
A cobertura das eleições presidenciais brasileiras de 2014 pelos grandes meios de comunicação foi claramente contrária à candidatura da presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), que tentou – e conseguiu – mais quatro anos de governo. O desequilíbrio favoreceu ora a candidata Marina Silva, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que entrou no páreo após a morte de seu companheiro de chapa, Eduardo Campos, e acabou em terceiro lugar na primeira etapa da corrida presidencial; ora o candidato Aécio Neves, do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), que passou para o segundo turno e perdeu o duelo eleitoral contra Dilma Rousseff por uma estreita margem de votos.
Por: Tadeu Breda
O comportamento dos grandes veículos de imprensa está demonstrado objetivamente por pesquisadores do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública, sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ao longo do processo eleitoral, eles lançaram um site chamado Manchetômetro[1] para monitorar notícias com valência “positiva”, “negativa” e “neutra” aos três principais candidatos, publicadas pelos três maiores diários do país: Folha de S. Paulo, da família Frias; O Estado de S. Paulo, da família Mesquita; e O Globo, da família Marinho. Com parâmetros semelhantes, analisaram ainda o telejornal de maior audiência entre os brasileiros, o Jornal Nacional, da TV Globo, também pertencente à família Marinho.
Nos três maiores diários do país, é gritante o número de notícias com “valência contrária” à candidata Dilma Rousseff em comparação aos textos que desabonam seus adversários, não apenas durante a campanha, iniciada em 6 de julho, mas também antes do início do calendário eleitoral.[2] O mesmo padrão se repete com as reportagens contrárias ao PT nos três jornais – muito mais numerosas que o conteúdo desfavorável a PSDB e PSB.[3]
Se analisada apenas a manchete principal de cada periódico, grande vitrine para o leitor, Dilma Rousseff e PT também vencem em número de destaques negativos.[4] O Manchetômetro mediu ainda a valência de manchetes relativas à política econômica – tema que, como veremos mais adiante, dominou parte do debate eleitoral. Neste quesito, as capas de Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo também pesaram contra a candidata à reeleição.[5]
Qualitativamente, porém, o papel da grande mídia e das redes sociais, o desequilíbrio na cobertura eleitoral e a relação dos candidatos com esse desequilíbrio pode ser resumido por uma única cadeia de fatos, ocorrida num período de apenas cinco dias: os últimos quatro de campanha e o primeiro após o pleito.
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O enredo tem início na quinta-feira, 23 de outubro, quando a revista de maior circulação do país, Veja, publicada pela Editora Abril, da família Civita, resolve antecipar a divulgação de sua edição semanal, que normalmente é publicada aos sábados. A imagem da capa – apenas a capa – da edição nº 2.397 é então colocada na página da revista no Facebook e outras redes sociais.
“Eles sabiam de tudo”, anuncia, em grandes letras vermelhas, uma fotomontagem com os rostos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff, ambos do PT. O assunto: novas “revelações” sobre o esquema de corrupção na Petrobras, a companhia petrolífera controlada pelo governo federal.[6]
Os brasileiros vão às urnas dentro de três dias – no domingo, 26 de outubro – para escolher em segundo turno quem governará o país entre 2015 e 2018.
Candidata à reeleição, Dilma Rousseff enfrenta o senador Aécio Neves, ex-governador do estado de Minas Gerais e neto do primeiro presidente da democracia, Tancredo Neves, que, após ter sido escolhido pelo colégio eleitoral de transição, morreu em 1985 antes de tomar posse. Aécio Neves representa um partido que já esteve à frente do Palácio do Planalto por oito anos, entre 1994 e 2002, com Fernando Henrique Cardoso. Pela primeira vez em 12 anos, um candidato do PSDB reivindica abertamente a “herança” do ex-presidente durante a campanha.[7]
O candidato da oposição vinha liderando todas as pesquisas de opinião no segundo turno – até que, em 20 de outubro, levantamentos dos intitutos Ibope e Datafolha colocam Dilma Rousseff na dianteira pela primeira vez desde o início do duelo. Três dias depois, em 23 de outubro, novas pesquisas confirmam o favoritismo da presidenta e ampliam sua vantagem: 53% contra 47% dos votos válidos, segundo o Datafolha; 54% contra 46%, de acordo com o Ibope.[8]
Com as eleições se aproximando e duas pesquisas consecutivas atestando a recuperação de Dilma Rousseff, a divulgação antecipada da capa de Veja foi recebida com revolta pelos apoiadores do PT. Em compensação, os correligionários de Aécio Neves se animaram com a novidade, vista como “golpe de misericórdia” que enterraria a candidatura da presidenta e abriria caminho para uma nova vitória do PSDB após três mandatos de seu maior rival.
A acusação direta contra Lula e Dilma coroou mais de seis semanas de ataques de Veja contra membros do PT e do governo federal exclusivamente por causa da recente onda de acusações sobre desvios de verba na Petrobras. Os ataques eram repercutidos prontamente pelos demais grandes meios de comunicação, em rádio, TV, papel e internet, ampliando seu alcance. A base das denúncias foram depoimentos sigilosos de duas pessoas presas pela Polícia Federal numa operação conhecida como Lava Jato, que desmontou o esquema de corrupção na companhia.
Os ataques eram repercutidos prontamente pelos demais grandes meios de comunicação, em rádio, TV, papel e internet, ampliando seu alcance.
Os delatores – Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, e Alberto Youssef, doleiro e operador do esquema – aceitaram colaborar com a Justiça em troca do abrandamento de suas penas. Contaram detalhes das ilegalidades a delegados e procuradores de Justiça, revelando a participação de outras pessoas. Partes selecionadas dessas informações acabaram na imprensa antes mesmo da conclusão das investigações.
Os depoimentos de Paulo Roberto Costa à Polícia Federal foram os primeiros a cair nas mãos de Veja, que dedicou ao assunto uma capa em 10 de setembro, já durante a campanha eleitoral, com os dizeres: “O delator fala”. Alberto Youssef teria o rosto estampado na edição de 22 de outubro, menos de uma semana antes da eleição, com a manchete: “O doleiro fala”.
A imagem sombria de Dilma ao lado de Lula com a frase “Eles sabiam de tudo”, emolduradas pelo reconhecido logotipo da revista, desestabilizam a reta final da campanha.
Na sexta-feira, 24 de outubro, militantes do PSDB distribuem panfletos com a capa – apenas a capa – de Veja em algumas capitais do país, como Belo Horizonte, na tentativa de evitar que o resultado das últimas pesquisas se repita nas urnas.[9] Simpatizantes do PSDB e da candidatura de Aécio Neves transformam as novas revelações em memes e os disparam nas redes sociais. Correligionários do PT fazem o mesmo, mas usam a capa, ironicamente modificada, para difundir críticas à revista e aos adversários.[10]
Diante da nova avalanche de acusações, Dilma Rousseff dedica seis minutos de seu último programa eleitoral gratuito na televisão – mais da metade do tempo disponível – para rebater as insinuações da revista:
Gostaria de encerrar minha campanha na TV de outra forma, mas não posso me calar frente a este ato de terrorismo eleitoral articulado pela revista Veja e seus parceiros ocultos, uma atitude que envergonha a imprensa e agride nossa tradição democrática. Sem apresentar nenhuma prova concreta e, mais uma vez, baseando-se em supostas declarações de pessoas do submundo do crime, a revista tenta envolver diretamente a mim e ao presidente Lula nos episódios da Petrobras, que estão sob investigação da Justiça (…) Desta vez, Veja excedeu todos os limites.[11]
Dilma classificou a capa da revista como barbaridade, infâmia, absurdo e crime. “É mais do que clara a intenção malévola da Veja em interferir de forma desonesta e desleal nos resultados das eleições”, continuou, tecendo mais e mais críticas à publicação, antes de concluir: “Os brasileiros darão sua resposta a Veja e seus cúmplices nas urnas. E eu darei a minha resposta a eles na Justiça.”
Alvo cotidiano de ataques da revista, a presidenta jamais havia reagido com tamanha dureza aos ataques de um veículo de imprensa – e não foram poucos ao longo dos últimos quatro anos.
Curiosamente, os meios de comunicação que vinham repercutindo as denúncias de corrupção na Petrobras passam toda sexta-feira, 24 de outubro, sem dar destaque à capa da revista. No máximo, publicam pequenas entrevistas com o advogado de Alberto Youssef, Antonio Figueiredo Basto, que não confirmou nem desmentiu a delação do doleiro, alegando que não poderia revelar o conteúdo das conversas entre seu cliente e os policiais.[12]
À tarde, membros da União da Juventude Socialista (UJS), setor estudantil do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), aliado histórico do PT, realizam protesto diante da sede da Editora Abril, em São Paulo, onde se localiza a redação de Veja. Espalham lixo em frente ao portão da empresa e picham mensagens contra a revista nos muros que protegem o edifício.
À noite, Dilma Rousseff e Aécio Neves se dirigem aos estúdios da TV Globo, no Rio de Janeiro, para o último debate antes das eleições – que costuma ser transmitido pelo conglomerado comunicacional da família Marinho graças a seu poder e influência. Escolhido para iniciar o programa, Aécio Neves cita diretamente a capa de Veja contra a adversária.
No sábado, 25 de outubro, jornais de grande circulação amanhecem com reportagens repercutindo a denúncia. “Doleiro acusa Lula e Dilma, que fala em terror eleitoral”, diz a manchete da Folha de S. Paulo. Com menos destaque, o jornal O Estado de S. Paulo anuncia: “Lula mandou pagar agência do esquema, diz doleiro”. À noite, o Jornal Nacional, da TV Globo, ao noticiar os “atos de vandalismo” na Editora Abril, reproduz o conteúdo da reportagem de Veja, exibindo trechos da revista no noticiário mais assistido de todo o país.[13]
No domingo, 26 de outubro, os brasileiros finalmente são convocados ao voto. Nas redes sociais, começam a correr rumores – amplificados pela imprensa – de que Alberto Youssef teria sido envenenado em retaliação às delações. A Polícia Federal, que mantém Youssef sob custódia na cidade de Curitiba, no Paraná, se apressa em desmentir a morte do doleiro.[14] O próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, se vê obrigado a conceder entrevista negando os boatos, que considera “inaceitáveis”.[15]
Às 20h30, o Tribunal Superior Eleitoral anuncia a vitória de Dilma Rousseff. Horas depois, o término das apurações mostraria que o triunfo da presidenta sobre Aécio Neves ocorreu por uma estreita margem de 3.459.963 votos, num universo de 142.821.358 votantes. Dilma acabou com 51,64% dos votos válidos. Aécio, com 48,36%. É uma diferença de apenas 3,28 pontos percentuais. São as eleições mais acirradas e imprevisíveis desde a redemocratização do país, em 1989.
A presidenta venceu na maioria dos estados da região Norte e em todos os estados do Nordeste, onde abriu vantagem de quase 13 milhões de votos sobre o adversário. Em compensação, Aécio Neves bateu Dilma no Centro-Oeste e Sul – e no estado de São Paulo, mais populoso do país, onde teve saldo de quase sete milhões de votos sobre a presidenta.[16]
Os meios de comunicação se apressam em divulgar mapas do Brasil pintados de vermelho, cor do PT, na parte Norte e Nordeste, e de azul, cor do PSDB, na parte Centro-Oeste e Sul. O Sudeste, região economicamente mais rica e populosa do país, ficou dividido: os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro preferiram Dilma; São Paulo e Espírito Santo, Aécio.
Na mesma noite, porém, as redes sociais começam a regir ao resultado das urnas. Entre comemorações e lamentos, a ONG SaferNet registra, no próprio domingo, a criação de pelo menos 305 páginas de ódio no Facebook,[17] sobretudo contra nordestinos, repetindo fenômero ocorrido em 5 de outubro de 2014,[18] após o primeiro turno das eleições, e em 2010,[19] quando Dilma Rousseff, também com expressiva votação no Nordeste, conseguira sua primeira vitória eleitoral.
Novamente os moradores da região mais empobrecida do país, vítimas de preconceito em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, para onde migraram massivamente no século 20 em busca de melhores condições de vida, são hostilizados pelos brasileiros do Sul e Sudeste, sobretudo os paulistas, por terem garantido mais quatro anos de Dilma no poder.
Ex-comandante da tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, Paulo Telhada, que ocupa o cargo de vereador na maior cidade do país e acabara de eleger-se deputado estadual pelo PSDB, com 254 mil votos, defende no Facebook que os paulistas deem início a um movimento secessionista, que englobaria outros estados do Sul e Sudeste onde o PT foi derrotado.
“Que o Brasil engula esse sapo atravessado. Acho que chegou a hora de São Paulo se separar do resto desse país”, propôs, reproduzindo cartaz que convocava paulistas a lutarem durante a Revolução Constitucionalista de 1932 contra o então presidente Getúlio Vargas.
Já que o Brasil fez sua escolha pelo PT, entendo que Sul e Sudeste (exceto Minas Gerais e Rio de Janeiro, que optaram pelo PT) iniciem o processo de independência de um país que prefere esmola do que o trabalho, preferem a desordem ao invés da ordem, preferem o voto de cabresto do que a liberdade. Por que devemos nos submeter a esse governo escolhido pelo Norte e Nordeste? Eles que paguem o preço sozinhos.[20]
Ao contrário do que sugere o vereador do PSDB, porém, Nordeste e Sudeste tiveram participação muito semelhante na vitória de Dilma Rousseff. A região tão atacada por setores da elite paulista contribuiu com 20,2 milhões de votos para a vitória da canditada do PT. No Sudeste, 19,9 milhões de pessoas escolheram a presidenta: diferença de aproximadamente 300 mil votos.
Por sua vez, Aécio Neves teve 25,4 milhões de votos no Sudeste, quase 6 milhões de vantagem sobre Dilma Rousseff, mostrando que a região realmente prefere o tucano. Mas o representante do PSDB conseguiu apenas 7,9 milhões de votos entre os nordestinos – pouco mais de um terço da votação obtida pela presidenta na região.
Fica claro, portanto, que o Nordeste nutre ampla predileção por Dilma Rousseff. Mas não é verdade que essa preferência se reflete com tanta ênfase para Aécio Neves no Sudeste.
Por volta das 22h, em discurso da vitória, em Brasília, Dilma agradeceu eleitores e aliados, prometeu reformas e anunciou que fará um governo de conciliação, ampliando o diálogo com os diversos setores da sociedade e do Congresso Nacional.
Nenhuma palavra sobre as denúncias da Veja ou sobre o comportamento da imprensa durante a campanha – nem mesmo quando seus correligionários, felizes com o resultado das urnas, começaram a gritar: “O povo não é bobo! Abaixo a Rede Globo!”, tradicional slogan contra a hegemonia dos grandes meios de comunicação no país.
Na segunda-feira, 27 de outubro, a presidenta reeleita se recusa a oferecer coletiva de imprensa aberta a todos os veículos de imprensa. Prefere conceder duas entrevistas exclusivas à televisão. Primeiro, ao Jornal da Record, da TV Record, propriedade do bispo evangélico Edir Macedo, chefe da Igreja Universal do Reino de Deus. Depois, ao Jornal Nacional, da TV Globo. Exatamente como fizera em 2010.
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Desde as primeiras eleições livres após a ditadura, os grandes meios de comunicação – os mesmos que apoiaram o golpe militar em 1964 e sustentaram o regime por um bom tempo antes de passarem à oposição – tentam influenciar os rumos do pleito. Já se tornou um clássico a manipulação realizada pela TV Globo em 1989, no último debate entre os candidatos à Presidência da República. Na época, Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, e Fernando Collor de Melo, pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), disputaram o segundo turno – e Collor venceu.[21]
Para efeitos comparativos, o Manchetômetro publicou análises do comportamento dos meios de comunicação nas eleições de 1998, quando Lula, do PT, e Ciro Gomes, do Partido Popular Socialista (PPS), entre outros candidatos, foram derrotados em primeiro turno pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, que garantiu então sua reeleição.
As análises apontam para resultados parecidos entre 1998 e 2014 no que se refere à oposição da mídia hegemônica contra o PT. Os dados desmontam a tese de que Dilma Rousseff tenha enfrentado mais notícias desfavoráveis pois, já que ocupa o poder, teria mais predisposição ao sofrer críticas, não apenas dos outros candidatos, mas também dos meios de comunicação. Em 1998, Fernando Henrique Cardoso – tal como Dilma Rousseff, em 2014 – era um presidente em campanha pela reeleição. Mas o viés mediático contrário à presidenta do PT não encontrou semelhança na cobertura favorável recebebida pelo outrora candidato do PSDB.[22]
Em pleitos presidenciais, é natural que setores econômicos, políticos e sociais – enfim, grupos de interesse – assumam posição favorável ou contrária a um ou outro candidato. Ainda mais quando a disputa vai para um segundo turno. E ainda mais quando um partido que já ocupa o poder por 12 anos resolve manter-se no governo por mais quatro, caso do PT no Brasil em 2014. Assim como banqueiros, proprietários de terra, movimentos sociais e igrejas fazem suas escolhas eleitorais, também deve ser encarado com naturalidade o fato de que meios de comunicação tomem partido.
O problema é que a alta concentração midiática nas mãos de algumas famílias brasileiras – Frias, Marinho, Mesquita, Macedo, Civita, Saad etc. – impede que o confronto eleitoral se reproduza nos meios de comunicação com o mínimo de equilíbrio. Como a imprensa cumpre papel crucial na formação da consciência política da população, e não apenas em época de eleições, a balança acaba pendendo para os candidatos que fazem oposição conservadora às teses defendidas ou representadas pelo PT.
O problema é que a alta concentração midiática nas mãos de algumas famílias brasileiras – Frias, Marinho, Mesquita, Macedo, Civita, Saad etc. – impede que o confronto eleitoral se reproduza nos meios de comunicação com o mínimo de equilíbrio.
Diferentemente do que ocorria em 1989, porém, a imprensa brasileira, hoje, goza de muito mais pluralidade. Mas não porque, ao contrário de outros países, como Estados Unidos e Venezuela, o Brasil tenha impulsionado leis para regular a distribuição de frequências e concessões de rádio e televisão. O motivo está na internet.
Estima-se que cerca de 90 milhões de brasileiros tenham acesso à rede,[23] que trouxe crise ao modelo de negócio jornalístico tradicional, provocando o fechamento de jornais tradicionais, como Jornal do Brasil e Jornal da Tarde, além de ondas de demissão massivas[24] em grandes redações.
Mas a crise de mercado abriu espaço a pequenas iniciativas que prezam pela qualidade jornalística perdida pelos grandes meios de comunicação, além de se localizarem em campo ideológico diverso ao da grande imprensa. É o caso de sites como Fórum, Pública, Ponte, Rede Brasil Atual, Outras Palavras, A Nova Democracia e Fluxo, por exemplo, além do fenômeno Mídia Ninja, que explodiu durante as manifestações de junho de 2013.
São iniciativas que mantêm redações enxutas, por vezes descentralidadas, e assumem posições políticas com maior clareza, desprezando o mito da imparcialidade tão alardeado pelos grandes jornais, revistas e canais de TV do país. São sustentadas de maneira heterodoxa, seja por fundações internacionais, publicidade governamental, colaboração espontânea de leitores, “mecenas” ou sindicatos. Vivem em dificuldades financeiras, mas têm sido consideradas um respiro de qualidade num ambiente dominado por interesses outros que não mais o jornalismo.
Os últimos dez anos também assistiram ao surgimento e consolidação dos chamados “blogueiros progressistas”. São profissionais que conseguiram certo renome no meio jornalístico tradicional, como Paulo Henrique Amorim, Rodrigo Viana, Luís Nassif e Luiz Carlos Azenha, e que, mais recentemente, na internet, assumiram papel de contenção e contraposição aos ataques midiáticos contra governos do PT. Costumam ser acusados de receber grandes somas de dinheiro na forma de publicidade do governo federal, mas os valores a que têm acesso são infinitamente menores que os recebidos pelos grandes meios de comunicação.[25]
Essa maior pluralidade no cenário jornalístico brasileiro, porém, não basta para haja equilíbrio no noticiário que chega aos cidadãos. Isso porque, por mais que novos canais de comunicação tenham sido criados na internet, e cresçam ano a ano, os grandes jornais, revistas, rádios e, sobretudo, canais de televisão ainda são determinantes na formação da opinião pública brasileira. Em termos de alcance e influência, não há a menor base de comparação entre os novos sites jornalísticos e o Jornal Nacional, da TV Globo, ou qualquer um dos três grandes jornais do país.
Essa maior pluralidade no cenário jornalístico brasileiro, porém, não basta para haja equilíbrio no noticiário que chega aos cidadãos. Isso porque, por mais que novos canais de comunicação tenham sido criados na internet, e cresçam ano a ano, os grandes jornais, revistas, rádios e, sobretudo, canais de televisão ainda são determinantes na formação da opinião pública brasileira.
Até porque, ao longo dos 12 anos em que Lula e Dilma ocupam o poder, também surgiram no Brasil blogs e colunistas claramente alinhados com a oposição – e que costumam ser os campeões de audiência. A maioria deles encontra guarida na revista Veja, a partir de onde destilam muito ódio e poucos argumentos contra o governo e seus membros – a que se referem constantemente como PeTralhas ou corruPTos.
Reinaldo Azevedo é o mais proeminente deles. Além de manter um seção na Veja – que, apenas em outubro de 2014, mês das eleições, recebeu sozinha mais de 15 milhões de acessos –, escreve semanalmente para a Folha de S. Paulo e apresenta o jornal vespertino Pingos nos Is pela rádio Jovem Pan. Azevedo se apressou ao falar em impeachment da presidenta Dilma Rousseff depois da divulgação da capa da revista Veja às vésperas do segundo turno da eleição de 2014.[26]
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A reação de Dilma Rousseff contra a capa da revista Veja evocou uma posição histórica do PT, crítica à atuação e ao “discurso único” dos grandes meios de comunicação brasileiros.[27] No entanto, a relação diária entre PT e grande imprensa está longe de ser pautada pela crítica. Seria mais correto defini-la como uma alternância entre momentos de “amor e ódio”, oscilação de humor que obedece à valência “positiva” ou “negativa” das notícias e à conveniência de seus líderes em divulgá-las ou escondê-las do grande público.
Enquanto membros do PT esperneiam contra os grandes jornais, revistas e canais de TV do país ao lerem notícias e opiniões desfavoráveis, como ocorreu com Veja e Dilma Rousseff às vésperas da eleição, o partido costuma procurar veículos da grande imprensa para publicar suas opiniões ou divulgar fatos desfavoráveis a seus adversários. E não hesita em elogiá-los por isso.
Durante a campanha, a equipe de Dilma Rousseff reproduziu na televisão 31 reportagens publicadas pela Folha de S. Paulo a favor do governo ou contra seu adversário.[28] A maioria delas diz respeito a manchetes dos anos em que o PSDB, partido de Aécio Neves, governava o país com Fernando Henrique Cardoso: notícias sobre desemprego e privatizações, por exemplo. Mas também houve publicações recentes, como a construção de um aeroporto na cidade de Cláudio, em Minas Gerais, obra que teria sido feita com dinheiro público no terreno de um tio de Aécio Neves.[29]
A relação orgânica do PT com os monopólios comunicacionais também se expressa pelo “prestígio” conferido por lideranças do partido aos grandes jornais, revistas e canais de televisão. Quando Dilma Rousseff escolhe – porque se trata de uma escolha, sempre – conceder suas primeiras entrevistas como presidenta reeleita à maiores emissoras do país, controladas por um bispo evangélico e uma família oligárquica, ela está contribuindo para a boa imagem desses mesmos veículos de comunicação, para sua relevância e importância, em detrimento dos demais.[30]
O mesmo fenômeno ocorre quando líderes políticos, econômicos e sociais elegem veículos do mainstream para divulgar informações exclusivas – o chamado “furo” – ou para publicar artigos de opinião, na tentativa de influenciar os rumos da opinião pública.
Não se sugere, aqui, que governos, partidos e lideranças partidárias devam boicotar veículos que lhes fazem oposição. Muito pelo contrário. Tal postura seria tão pouco republicana quanto dar atenção apenas aos grandes e poderosos, como costuma ocorrer com grupos políticos e administradores públicos brasileiros – os mesmos que permanecem inertes diante da absoluta concentração de poder midiático no país.
Após oito anos de Lula e quatro de Dilma, os governos do PT têm se recusado a levar adiante um projeto de lei para regulamentar o funcionamento dos meios de comunicação, não com regras preestabelecidas para o conteúdo, que deve continuar livre que quaisquer orientações prévias, mas para delimitar temas como a responsabilidade dos profissionais, direitos de resposta e, sobretudo, o funcionamento econômico das empresas midiáticas, acabando com os oligopólios.[31]
Criticada não apenas pelo PT, a capa da revista Veja tem sido compreendida por alguns analistas, como Venícia A. Lima, como “último alerta” de que uma reforma nas comunicações é urgente para garantir a democracia brasileira, e não para enterrá-la, como dizem os críticos da iniciativa, muito bem instalados na estrutura comunicacional ou bem representados por ela.
O grand finale do processo de construção de uma “linguagem do ódio” e da partidarização da cobertura jornalística – que vinha progressivamente se radicalizando ao longo de toda a campanha – confirmou os graves riscos para o processo eleitoral e, sobretudo, para a própria democracia, de um mercado oligopolizado que favorece a ação desmesurada e articulada de grupos privados de mídia na defesa de interesses inconfessáveis.[32]
Os argumentos se reforçam com as observações de Luciano Martins Costa, para quem, “em sua derradeira e desesperada tentativa de reverter a direção dos votos para a Presidência da República”, “a imprensa brasileira escavou o poço da dignidade” às vésperas do segundo turno.
A opção da imprensa por estimular o radicalismo, ao mesmo tempo em que seus editoriais condenavam hipocritamente as trocas de farpas entre os candidatos, é o fermento da insensatez que define muitos votos, que afeta o discernimento em ambos os lados do espectro ideológico em que se divide o país e estimula atitudes radicais como a dos militantes que picharam a sede da Editora Abril.[33]
Sylvia Moretzsohn contribui à crítica ao desconstruir a ideia de que meios de comunicação são apenas mensageiros dos fatos – e que, por isso, não devem jamais ser atacados pelo que publicam. Foi o argumento usado pela revista ao responder as críticas da presidenta Dilma Rousseff no programa eleitoral. Para rebatê-la, Moretzsohn citou o jornalista português José Vitor Malheiros:
Os jornalistas não são mensageiros porque o seu papel não consiste em transportar de um lugar para outro – das folhas de um processo para as páginas de um jornal, por exemplo – uma dada mensagem. Um jornalista não é um estafeta reduzido a um papel de mero transporte, nem um pé de microfone. (…) os jornalistas, sendo mediadores porque estabelecem uma mediação entre leitores e sociedade, são produtores de informação e possuem o dever de escolher, filtrar e validar as notícias que dão – a partir da informação que recolhem activamente ou que recebem passivamente – e até de traduzir, descodificar, explicar, enquadrar ou mesmo comentar as notícias que o exijam. São os autores das notícias.[34]
Apesar de ter sido pouco incisiva, até mesmo a ombudsman da Folha de S. Paulo, Vera Magalhães Martins, criticou a opção do jornal em reproduzir denúncias sem provas contra Dilma e Lula em sua manchete principal na véspera da eleição. E aproveitou para estender suas observações ao concerto geral das mídias de grande alcance no país.
Não foram só as campanhas partidárias que surfaram na onda acusatória nas eleições deste ano. A imprensa navegou como nunca na mesma maré. A busca do furo e do protagonismo jornalístico fez os veículos esgarçarem seus critérios, dando enorme publicidade a acusações que só poderão ser comprovadas no futuro. Se é que o serão.[35]
Vera Magalhães Martins também criticou o apreço dos grandes meios de comunicação a informações sigilosas que não podem ser devidamente checadas, e que conferem aos provedores dessa mesma informação – no caso, policiais federais e procuradores de Justiça – o poder de filtrar e selecionar apenas dados que desejam ver estampados na capa dos jornais. E quando.
O problema é que a natureza sigilosa da apuração dá a algumas fontes um poder enorme, que não deveria ser concedido a ninguém: o de anonimamente vazar o que lhes convém, sem obrigação de apresentar provas. Basta a presunção de que o criminoso esteja falando a verdade para não perder o prêmio da delação. É assustador.
Durante as eleições brasileiras, o acesso controlado a informações blindadas por lei provocou o que a ombudsman chamou de “manchetes construídas com um fiapo de apuração, baseadas em vazamentos seletivos, feitos a conta gotas”, que acabaram, como concluiu o Manchetômetro, privilegiando as candidaturas de oposição. “O PT levou a pior”, confessa a representante da Folha de S. Paulo, cujos argumentos seriam reforçados quase três semanas depois: ao longo da campanha, delegados da Polícia Federal envolvidos na Operação Lava Jato usaram seus perfis no Facebook para divulgar mensagens contra Dilma Rousseff e louvar a candidatura de Aécio Neves.[36]
Tantas críticas não podem ser consideradas vazias ou politizadas, pois, tecnicamente, o conteúdo da reportagem de Veja deixa a desejar. De fato, estranha-se que uma denúncia tão grave como o envolvimento direto do ex-presidente e da presidenta da República em esquema de corrupção na maior empresa brasileira, propriedade do governo federal, habite a capa de uma determinada edição da revista e, nas seguintes, simplesmente desapareça, como ocorreu com Veja.
Ainda que, mais adiante, fique comprovado que Lula e Dilma Rousseff realmente “sabiam de tudo”, a própria reportagem admite que não há qualquer evidência além do depoimento sigiloso de Alberto Youssef que sugira o envolvimento dos líderes do PT no esquema de corrupção.
“O doleiro não apresentou – e nem lhe foram pedidas – provas do que disse”, informa o texto, que atribui as denúncias a episódios perdidos na memória do delator, “lembranças de discussões telefônicas” entre Lula e um dos acusados de participar da quadrilha instalada na Petrobras.
Numa cautela que não coaduna com o teor da capa, a revista pondera, em franca contradição consigo mesma:
Obviamente, não se pode condenar Lula e Dilma com base apenas nessa narrativa. Não é disso que se trata. Youssef simplesmente convenceu os investigadores de que tem condições de obter provas do que afirmou a respeito de a operação não poder ter existido sem o conhecimento de Lula e Dilma (…)
Por mais que a direção de Veja tenha se esforçado em defender[38] a pertinência da capa, rebatendo acusações de Dilma Rousseff e classificando as ações judiciais movidas pelo PT no Tribunal Superior Eleitoral como tentativas de censura, não há argumento jornalístico possível que tolere a publicação de uma capa com os dizeres “Eles sabiam de tudo” às vésperas das eleições presidenciais quando o conteúdo da “reportagem” afirma literalmente o contrário.
Curiosamente, a revista – e os comentaristas que saíram em sua defesa, como Demétrio Magnoli[39] – fogem a esse debate. Preferem insistir que a revista tinha o direito de noticiar que Alberto Youssef citou o nome de Lula e Dilma Rousseff em depoimento à Polícia Federal e ao Ministério Público, o que ninguém discorda, mas evitam debater se a delação era suficiente para estampar uma capa com o veredicto “Eles sabiam de tudo”. Obviamente, não era.
Daí que não restem dúvidas sobre as intenções da revista, dos demais veículos de imprensa que repercutiram acriticamente as denúncias, dos comenaristas políticos e dos milhões de brasileiros que compartilharam as manchetes bombásticas nas redes sociais: desgastar a candidata à reeleição e influenciar no processo eleitoral às vésperas do pleito.
Tais foram seus fins, e estes fins justificam os meios, não apenas os meios de comunicação em si, sua existência e seu papel político, mas os meios que empregaram para atingir os objetivos – talvez inconfessáveis – que perseguiram em 2014.
Um reflexo, um resumo, do cenário midiático brasileiro.
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Mas nem só de atritos entre Dilma Rousseff, PT e Veja se fez o pleito presidencial de 2014. As eleições mais acirradas e imprevisíveis desde a redemocratização não contaram apenas com resultados apertados e notícias bombásticas divulgadas quando as urnas estavam prestes a serem abertas. Houve, por exemplo, um fato inédito: a morte de um candidato em plena campanha, Eduardo Campos, e sua substituição por uma candidata cujo partido não havia conseguido autorização da Justiça para disputar as eleições.
Houve um sobe-e-desce frenético nas pesquisas de opinião, que transformaram em temeridade qualquer palpite sobre os resultados. Houve uma enxurrada de denúncias de corrupção, que se concentraram em Dilma Rousseff e no PT, devido aos desvios na Petrobras, mas que, em alguns momentos, atingiram todos os candidatos e partidos com chances de vitória. Houve Copa do Mundo, que, por ter ocorrido às vésperas do início da campanha e ter sido seadiada no Brasil, ganhou intensos contornos políticos tanto nas ruas – com greves, manifestações e repressão policial – como nos estádios, com gritos de gol, decepção e vaias à presidenta da República.
Direta e indiretamente, o mercado financeiro exerceu ativismo incomum na contenda eleitoral. Consultorias publicaram relatórios e bancos comunicaram seus clientes sobre os riscos econômicos de uma nova vitória do PT. A Bolsa de Valores de São Paulo caiu e subiu ao sabor das expectativas de vitória de Dilma Rousseff, Aécio Neves ou Marina Silva. Ganhou-se e perdeu-se dinheiro até mesmo com a morte de Eduardo Campos. O candidato do PSDB dialogou diretamente com os investidores ao nomear seu futuro ministro da Fazenda em caso de vitória.
Direta e indiretamente, o mercado financeiro exerceu ativismo incomum na contenda eleitoral. Consultorias publicaram relatórios e bancos comunicaram seus clientes sobre os riscos econômicos de uma nova vitória do PT.
Talvez o marco inaugural das eleições de 2014 tenha ocorrido um ano antes dos eleitores serem convocados às urnas. Em 3 de outubro de 2013, a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e seus alidos recebiam uma péssima notícia. Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral haviam negado registro à Rede Sustentabilidade, partido que a então pré-candidata tentava oficializar com o intuito de entrar na disputa com uma sigla própria, condizente com suas propostas de implementar uma “nova política”, combater o fisiologismo dos grupos tradicionais e acabar com a polarização entre PT e PSDB.
Contudo, de acordo com a corte eleitoral, os militantes da Rede Sustentabilidade haviam colhido apenas 442.524 assinaturas válidas apoiando a regularização do novo partido – menos do que o mínimo exigido em lei para legalizá-lo: 491.949.[40] Diante do número, insuficiente, apenas um dos sete magistrados do TSE, Gilmar Mendes, votou favoravelmente à criação da Rede Sustentabilidade, cujas lideranças denunciavam que haviam conseguido mais de 900.000 assinaturas, acusando cartórios eleitorais de regiões controladas por prefeituras do PT, como o ABC paulista, na Região Metropolitana de São Paulo, de darem sumiço nos documentos.[41]
Com bons resultados nas eleições de 2010, que disputou pelo Partido Verde (PV), quatro anos de articulações políticas e boa imagem entre manifestantes que saíram às ruas em junho de 2013, Marina Silva não queria perder a chance de concorrer à Presidência da República. No último dia estipulado pela justiça para filiações partidárias, 5 de outubro, e após receber convites de ao menos seis partidos, Marina resolveu filiar-se ao PSB, que já vinha articulando a candidatura de seu presidente nacional, Eduardo Campos, ex-governador de Pernambuco.[42]
Após uma disputa interna, com direito a declarações desencontradas na imprensa,[43] Marina Silva aceitou ser vice na chapa de Eduardo Campos – e isso apesar de ser uma figura mais conhecida entre o eleitorado e obter melhores resultados nas pesquisas disponíveis até então. Em 28 de junho de 2014, Eduardo e Marina lançariam oficialmente a candidatura da ex-ministra e do ex-governador que pretendiam mudar as práticas políticas brasileiras.
Em 12 de junho, dia de abertura da Copa do Mundo, a Folha de S. Paulo estampou em sua capa a seguinte manchete: “Copa começa hoje com seleção em alta e organização em xeque”. Poucas vezes um exercício de futurologia foi tão infeliz: após uma campanha sofrível, a seleção brasileira seria derrotada por 7 a 1 pela Alemanha no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, na maior goleada já sofrida pelo Brasil na história do futebol. O torneio, porém, transcorreria sem maiores percalços organizativos, aproximando-se muito mais do slogan governamental “Copa das Copas” do que do fiasco falsamente anunciado pela Fifa e pela oposição.
Em 12 de junho, dia de abertura da Copa do Mundo, a Folha de S. Paulo estampou em sua capa a seguinte manchete: “Copa começa hoje com seleção em alta e organização em xeque”. Poucas vezes um exercício de futurologia foi tão infeliz: após uma campanha sofrível, a seleção brasileira seria derrotada por 7 a 1 pela Alemanha no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, na maior goleada já sofrida pelo Brasil na história do futebol.
Antes do jogo inaugural, a presidenta Dilma Rousseff seria vaiada[44] pelos torcedores que compareceram à Arena Corinthians, em São Paulo, para assistir à partida entre Brasil e Croácia – fato que se repetiria na partido final do torneio.[45] Nas ruas, longe do estádio, manifestações organizadas pela frente Se Não Tiver Direitos Não Vai Ter Copa e pelo Sindicato dos Metroviários de São Paulo, entidades contrárias aos gastos públicos empenhados na organização do torneio e à demissão de 42 trabalhadores após uma greve nos trens subterrâneos paulistas, foram brutalmente reprimidas pela Polícia Militar.[46]
Ao longo da competição, ativistas seriam detidos no Rio de Janeiro e São Paulo. Passariam a responder processos contestados por juristas e movimentos sociais – e alguns foram mantidos presos por até 46 dias, como ocorreu com Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi.[47] As “ilegalidades” fariam com que a advogada Eloísa Samy, militante denunciada pela polícia fluminense, pedisse asilo político no Consulado do Uruguai no Rio de Janeiro uma semana depois da Copa. As autoridades uruguaias, porém, negaram a solicitação.[48]
Em 20 de julho, o jornal Folha de S. Paulo publicou denúncias de que o governo de Minas Gerais teria construído aeroporto no terreno de um tio do ex-governador Aécio Neves na cidade de Cláudio (MG).[49] A manchete inaugurou a temporada de troca de acusações na campanha presidencial de 2014, que teria continuidade com o “vazamento” de depoimentos do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, e do doleiro Alberto Youssef sobre esquema de desvio de verbas na estatal em benefício do PT e partidos aliados. E o aeroporto caiu no esquecimento.
Em 25 de julho, o banco espanhol Santander enviou aos seus clientes de alto rendimento uma carta em que demonstrava preocupação com a situação econômica do país caso Dilma Rousseff fosse reeleita como presidenta da República.
Se a presidente se estabilizar e voltar a subir nas pesquisas, um cenário de reversão pode surgir. O câmbio voltaria a se desvalorizar, juros longos retomariam alta e o índice Bovespa cairia, revertendo parte das altas recentes. Esse último cenário estaria mais de acordo com a deterioração de nossos fundamentos macroeconômicos.[50]
Em resposta aos diretores do Santander, o ex-presidente Lula condenou a interferência de instituições financeiras estrangeiras na disputa eleitoral e declarou que o banco jamais lucrou tanto em outros países como no Brasil. “Não tem nenhum lugar do mundo em que o Santander esteja ganhando mais dinheiro do que no Brasil. Aqui ele ganha mais do que em Nova York, mais do que em Londres, do que em Pequim, Paris, Madri, Barcelona.”[51]
O presidente do banco, Emilio Botín, prometeu que os fatos seriam apurados e os responsáveis pelo envio da carta, demitidos – o que, assegurou mais tarde, disse haver efetivamente ocorrido. Marina Silva, passaria então a usar contra Dilma as declarações de Lula a favor dos altos lucros bancários, sobretudo quando começou a ser acusada de querer “entregar o país aos bancos” ao defender a autonomia do Banco Central.
A divulgação da carta do Santander serviu como exemplo da ação coordenada de instituições financeiras e grupos de investimento contra a candidatura do PT.
Antes, consultorias haviam divulgados relatórios sobre a “tragédia” que se abateria sobre o país num próximo mandato de Dilma. Uma delas, Empiricus Research, disse em relatório intitulado Fim do Brasil?[52] que a reeleição da presidenta colocaria a economia brasileira em grave risco. As oscilações da Bolsa de Valores de São Paulo ao sabor das pesquisas eleitorais também revelaram como o “mercado” se comportou diante da expectativa eleitoral. Quando Marina Silva, do PSB, ou Aécio Neves, do PSDB, apareciam à frente dos levantamentos, o índice Bovespa subia. Quando Dilma assumia a dianteira, caía.[53]
A bolsa também oscilou com a morte de Eduardo Campos e as expectativas sobre como o acidente contribuiria – ou não – para a derrota do PT.
O jato Cessna Citacion 560XL que transportava o então candidato do PSB caiu na cidade de Santos, litoral de São Paulo, por volta das 10h do dia 13 de agosto. Todos os passageiros e tripulantes morreram instantaneamente. Foi uma manhã tensa para a política nacional. Antes de tomar conhecimento do desastre aéreo, correligionários do ex-governador o esperavam para um evento de campanha começaram a se preocupar com o atraso. E não conseguiam localizá-lo pelo celular. Antes do meia-dia daquela quarta-feira, meios de comunicação no rádio, TV e internet começavam a publicar notícias sobre o estranho sumiço do ex-governador pernambucano até a confirmação de que ele era uma das vítimas do desastre aéreo em Santos.
Pela primeira vez na história do país um presidenciável morre em plena campanha. A tragédia obviamente causou rebuliço imprevisível no cenário eleitoral, que permaneceu indefinido por uma semana. Quase que imediatamente, antes mesmo da identificação dos corpos, espalharam-se especulações e articulações sobre o futuro do PSB.
Houve, porém, uma espécie de trégua. Dilma Rousseff e Aécio Neves, além de lideranças políticas nacionais, como Lula, abdicaram de discussões públicas para dar um último adeus a Eduardo Campos nas cerimônias fúnebres que se realizaram no Recife, capital de Pernambuco. Após o enterro, a família, encabeçada pela viúva, Renata Campos, também entrou nas negociações políticas. Adotou o slogan do falecido – “Não vamos desistir do Brasil” – e deu sinal verde para que Marina Silva assumisse o lugar do ex-governador. O PSB faria o mesmo.
A comoção nacional causada pelo acidente, assunto hegemônico na imprensa naquele momento, e o capital político de Marina Silva, fruto de sua trajetória e de sua participação nas eleições de 2010, transformaram sua candidatura numa das favoritas na preferência popular. Em agosto, as pesquisas começaram a mostrar Marina Silva muito próxima de Dilma Rousseff, no primeiro turno, e à frente da candidata do PT, no segundo.
A ascensão da ex-senadora acendeu uma luz de emergência na campanha do PT, que começou então a “descontruí-la” com ataques considerados pesados até por Lula. O ex-presidente criticou os programas eleitorais do PT que compararam Marina Silva a Jânio Quadros (presidente que renunciou em 1961, provocando um cenário de instabilidade política que acabou no golpe militar de 1964) e Fernando Collor (que sofreu impeachment em 1992), dizendo que um futuro governo marinista transformaria o Brasil num país ingovernável.[54]
Aécio Neves caiu para um esquecido terceiro lugar e ficou a salvo do bombardeio empreendido por Dilma Rousseff, que preferiu mirar sua artilharia em Marina Silva. Para reverter a onda de pessimismo e dar um recado ao mercado financeiro, Aécio anunciou, em debate na TV Bandeirantes, da família Saad, em 27 de agosto, que nomearia o ex-diretor do Banco Central durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Armínio Fraga, como ministro da Fazenda.[55]
A dificuldade do candidato do PSDB em voltar a subir nas pesquisas fez com que, em 29 de agosto, começassem a circular rumores de que desistiria de concorrer à Presidência da República.[56] O candidato se viu obrigado a convocar uma coletiva de imprensa para desmentir a notícia.[57] Seu coordenador de campanha, José Agripino Maia, numa espécie de antecipação da derrota, deu declarações de que apoiariam Marina Silva no segundo turno contra Dilma Rousseff.[58]
O cenário mudaria lentamente, até o dia das eleições.
Marina Silva lança seu programa de governo em 29 de agosto e, em menos de 24 horas, recua em propostas destinadas à população LGBT. Entre a divulgação do texto e a decisão de retificá-lo, a candidata do PSB recebeu pelo Twitter ameaças do pastor Silas Malafaia, um dos líderes da igreja evangélica Assembleia de Deus.
“Aguardo até segunda-feira uma posição de Marina. Se isso não acontecer, na terça será a mais dura fala que já dei até hoje sobre um presidenciável”, escreveu.
De uma maneira geral, as propostas de Marina Silva se transformariam em alvo de ataques por parte de Dilma Rousseff e Aécio Neves, que se apressaram em marcar diferenças em relação ao programa da adversária. Dilma, por exemplo, atacou duramente as intenções de Marina de conferir autonomia ao Banco Central. E o PT pesou a mão contra uma das coordenadoras da campanha do PSB, Neca Setúbal, filha do banqueiro Olavo Setúbal e herdeira do Banco Itaú. A presença de Neca na cúpula da campanha de Marina Silva e o programa econômico liberal foram explorados pelos marqueteiros do PT para transmitir a ideia de que Marina Silva “entregaria o país aos bancos”.
Pese aos ataques, Marina Silva foi a única presidenciável a apresentar um texto com propostas para o país durante boa parte da campanha – e tentou usar o fato para abrir vantagem sobre os adversários, sem sucesso. Temendo críticas da oposição, Dilma se recusaria a fazê-lo, dizendo que suas ideias já vêm sendo colocadas em prática há quatro anos. Aécio Neves apresentaria seu plano de governo em 29 de setembro, uma semana antes do pleito.
Pese aos ataques, Marina Silva foi a única presidenciável a apresentar um texto com propostas para o país durante boa parte da campanha – e tentou usar o fato para abrir vantagem sobre os adversários, sem sucesso
Na semana que se seguiu ao primeiro turno das eleições, ocorrido em 5 de outubro, as forças políticas e sociais brasileiras se alinhararam aos presidenciáveis que passaram ao segundo turno. Dilma Rousseff não recebeu apoio formal de nenhum ex-candidato ou partido, mas o Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que acabou em quarto lugar com Luciana Genro, destinatária de 1.612.186 votos, orientou seus eleitores a não votarem em Aécio Neves.
Eduardo Jorge, do Partido Verde (PV), Pastor Everaldo, do Partido Social Cristão (PSC), Eymael, do Partido Social-Democrata Cristão (PSDC), e Levy Fidelix, do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), que acabara de protagonizar, em debate da TV Record, um dos discursos mais homofóbicos de toda a campanha, declararam voto em Aécio Neves.
Marina Silva demoraria uma semana em fazê-lo. Esperou lideranças do PSB e da Rede Sustentabilidade, seu partido extraoficial transformado em corrente do PSB, anunciarem suas posições. O PSB escolheu Aécio Neves. A Rede autorizou seus militantes a votarem branco, nulo ou Aécio – contrariando pontos de seu próprio estatuto e o discurso crítico à polarização PT x PSDB. Antes de finalmente anunciar apoio e voto a Aécio, Marina exigiu que o tucano fizesse “acenos” à sociedade brasileira e assumisse compromissos com reforma agrária, reforma política, salário mínimo, desenvolvimento sustentável e demarcação de terras indígenas, por exemplo.
Em resposta, Aécio Neves escreveu uma carta em 11 de outubro e, no dia seguinte, a ex-ministra disse que estaria ao lado do candidato do PSDB contra Dilma Rousseff. Participaria de comícios junto do ex-governador de Minas Gerais, traindo sua própria promessa de que jamais subiria no palanque do PSDB, e gravaria mensagens para o programa eleitoral na TV.
Além de levar Dilma Rousseff e Aécio Neves para o segundo turno, reproduzindo pela quarta vez em 20 anos o duelo entre PT e PSDB no pleito presidencial,[59] as eleições de 5 de outubro elegeram o Congresso Nacional “mais conservador” desde a redemocratização, de acordo com analistas do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.[60]
As primeiras pesquisas eleitorais divulgadas no segundo turno apontavam vitória de Aécio Neves contra Dilma Rousseff. O cenário, porém, foi mudando com o reinício da campanha. Ataques pessoais e denúncias de corrupção deram o tom dos programas de televisão e dos comícios – e chegaram aos debates. No programa organizado pelo SBT, em 16 de outubro, Dilma e Aécio protagonizaram um dos embates de mais baixo nível na discussão política de 2014, esquecendo propostas e preferindo trocar denúncias de corrupção, nepotismo e ineficiência administrativa.
No mesmo dia, o Tribunal Superior Eleitoral votaria resolução proibindo ataques pessoais nos programas televisivos do segundo turno e exigindo que os candidatos apresentassem propostas. A decisão favoreceu o candidato do PSDB, uma vez que sua vida e seu desempenho como administrador público jamais passaram pelo bombardeio que o governo petista sofre permanentemente dos grandes meios de comunicação.[61]