Performance e Tecnologia
Tavia Nyong’o, New York University
Introduzir
O que são os estudos da performance? através do fio condutor da "performance e tecnologia" é chamar a atenção tanto ao formato digital quanto ao conteúdo do livro. É talvez, também, desestabilizar a distinção entre os dois, na medida em que os formatos digitais estão rapidamente transformando a natureza dos textos, imagens, gravações de áudio e vídeo, e outros meios que eles conservam e circulam. Não se faz, simplesmente, um upload de conteúdo à Internet; o ato de fazer upload modifica esse conteúdo, a começar, mas não só, pela transformação de vários materiais analógicos em código binário digital. Essas transformações nem sempre são imediatamente visíveis na superfície do discurso sobre performance. Por exemplo, se seguirmos o fio condutor que este livro oferece por
tags como
#digital e
#virtual, encontraremos só algumas referências, pelo menos por enquanto. Essas esparsas referências à tecnologia contrastam com a abundante inter-referencialidade que se pode encontrar seguindo tags como
#corporeidade ou
#metodologia, que rapidamente nos levam ao centro de um debate dos estudos da performance. A tecnologia, em contraste, parece flutuar às margens. Mas ela também serve como margem, na medida em que as tecnologias específicas de arquivamento digital e publicação eletrônica oferecem a estrutura que torna essa discussão possível, oferecendo entrevistas em vídeo e documentações de performances, e fazendo hiperlinks entre os textos. Portanto, se a ênfase relativa das entrevistas apontam para uma história da constituição do projeto dos estudos da performance, a disponibilidade dessas entrevistas no formato atual — como um texto digital multilíngue multimídia e com múltiplos percursos não lineares — aponta para outra.
Os estudos da performance gravitam em direção àquilo que acontece
#ao vivo, ao
#afeto, à relacionalidade, ao minoritário, dissidente e
#queer. Um projeto assim muitas vezes, e compreensivelmente, será relegado pela marcha contemporânea rumo à digitalização total. O
Google Books representa uma visão tecnológica de acessibilidade do conhecimento mundial, oferecido por uma corporação multinacional, e que despreza conhecimentos locais, perspectivistas,
#rituais ou de alguma outra forma privilegiados. Os estudos da performance defendem formas de conhecer e de existir que escapam por entre as rachaduras e as fendas de uma epistemologia tão plana; procuram, ao contrário, pluralizar e multiplicar, mesmo quando esse pluralismo inclui o direito de permitir que certos conhecimentos e práticas continuem sendo obscuras, off-line, parciais ou efêmeras. A performance não oferece dados maleáveis que podem ser facilmente capturados, armazenados ou analisados como informação por meios digitais. Esforços na área da digitalização são, portanto, também necessariamente, exercícios de
#tradução (como Diana Taylor e Marcos Steuernagel exploram na sua
Introdução).
Para cada profissional dos estudos da performance que abraça com entusiasmo as tecnologias (e este abraço se estende a todo tipo de tecnologia, não só às digitais nas quais eu me enfoco nesta breve introdução), há um purista resistindo a intrusão das máquinas com vários graus de resistência, passiva e ativa. Existe uma tradição ardentemente debatida dentro dos estudos da performance que define a performance como uma presença
#ao vivo que escapa a todas as tentativas de gravar ou preservá-la. Até mesmo aqueles que não aderem a esta definição de performance às vezes aderem a uma
#metodologia que considera o que acontece ao vivo como primário e sua mediação como secundária. (Os derridaistas poderiam descrever este método como um vestígio do logocentrismo, ou como a prioridade metafísica da
#voz sobre o seu rastro escrito, mas essa é uma discussão para outro momento). Com a escassez crescente de recursos disponíveis para as humanidades incentivando a contenção disciplinar dentro de muitos
#departamentos acadêmicos, é às vezes tentador aderir à mais simples e legível das definições da performance ao vivo. O sucesso de tal manobra, paradoxalmente, seria que os estudos da performance teriam pouco a ver com, e ainda menos a dizer sobre, as transformações tecnológicas generalizadas na sociedade, nas artes e na
#política.
Uma consequência de se privilegiar o que acontece ao vivo como um objeto de análise dos estudos da performance é que a tecnologia tem sido discutida e debatida principalmente em relação ao seu papel na documentação e no
#arquivo, em vez daquilo que ela constrói e cria por si mesma. Pelo menos para algumas pessoas, a tecnologia interessa primariamente, e às vezes exclusivamente, pela sua capacidade de oferecer acesso mediado ao objeto real dos estudos da performance: as próprias performances ao vivo e corporificadas. Essa tendência nos estudos da performance julga a tecnologia da mesma forma em que Nietzsche procurava julgar a história, em termos de estar ou não "a serviço ou desserviço da vida". O problema em limitar a tecnologia exclusivamente ao arquivo é que, dito da maneira mais simples, a transformação tecnológica diz respeito ao futuro, no mínimo na mesma proporção em que diz respeito a preservar o passado. Embora o papel da tecnologia na expansão do acesso à
#memória cultural seja de fato crucial — e é nessa área que as humanidades têm deixado a sua maior marca digital — igualmente crucial é a maneira em que a tecnologia está dando forma à subjetividade, à expressão artística, à vida cotidiana e ao
#corpo em si. Deixar a análise desses assuntos para outras disciplinas seria uma oportunidade perdida para os estudos da performance.
Por mais forte que seja a tendência de deixar a tecnologia de lado, ou de limitá-la a um papel suplementar, há uma contra-tendência de longa data que busca ativamente incorporar a tecnologia na performance, as chamadas práticas intermediais. E existe hoje um movimento paralelo para fazer o mesmo na pesquisa da performance, as chamadas humanidades digitais. Longe de enquadrar a performance primeiro, seguida da sua documentação e
#arquivo, esta última tendência abrange o uso da tecnologia em todos os níveis, da concepção à execução. Na sua versão artística, os seus progenitores se encontram na arte por correio, arte em vídeo e na televisão, peças de radio e até mesmo certas formas de escrita experimental. Na sua versão acadêmica, os seus cognatos e interlocutores se encontram em diversos campos dos estudos do cinema, estudos das novas mídias, estudos críticos da programação (critical code studies) e estudos da ciência e tecnologia. Muitas vezes uma forte dimensão social ou ativista está presente nas estratégias de performance contemporâneas que utilizam ativamente a tecnologia, como aqueles que praticam a mídia tática ou os hackers. O impulso intervencionista de muitas (mas não todas) as artes intermediais e projetos nas humanidades digitais podem ser situados dentro do presente contexto de pesquisa acadêmica. Essas intervenções são ao mesmo tempo um sintoma e um engajamento crítico com a a realidade de que a ciência e a tecnologia são uma prioridade declarada para praticamente todas as grandes universidades, fundações de pesquisa e governos nacionais. Os estudos da performance, tendo cultivado durante muito tempo a arte de estar dentro mas nem sempre alinhado com as instituições, terão cada vez mais que navegar as promessas e os perigos dessas novas possibilidades
.
Permita-me concluir com uma nota pessoal, uma vez que escrever este prefácio apresentou uma oportunidade em si, a preciosa possibilidade da revisão. Ao assistir o vídeo da
minha própria entrevista neste livro, mais de uma década após a sua gravação original, vejo-me confrontado pela assombrosa duplicação do arquivo digital e da sua possível disseminação no futuro na forma de uma declaração sobre o que constitui o meu campo de estudos e o que eu estou fazendo dentro dele. Porque essa duplicação é estranha? Afinal, sou inegavelmente eu na gravação, bem parecido com o que eu sou agora. Estou respondendo uma pergunta que continua atual. Na verdade, me fizeram essa mesma pergunta ontem. “O que são os estudos da performance?” “O que exatamente você faz?” E mesmo assim, confesso que estou muito longe de me sentir satisfeito com a minha resposta documentada. A minha performance de competência, que eu estou visivelmente exibindo, não me satisfaz hoje. Sou da opinião de que o meu eu passado está demasiadamente consciente das circunstâncias públicas, mesmo diplomáticas, da minha entrevista. Eu não ensaiei suficientemente para parecer natural; não ensaiei suficientemente para falar de improviso. Nas palavras de
Schechner, não sou nem “não eu” nem “não-não eu.” Sou só eu, um fato que não me parece muito performativo. Cito respeitosamente disciplinas — história, antropologia, estudos culturais, literatura. Menciono debates e controvérsias. Uso cuidadosamente palavras-chave. Mas a soma total desse esforço, temo dizer, passa muito pouco do que eu estou sinceramente tentando transmitir. E ainda por cima, revendo a entrevista, sou repetidamente distraído pela frase enigmática, “os seus olhos só veem”, capturada no topo do quadro do cinegrafista, e que flutua por cima da minha cabeça durante a entrevista, como se estivesse ridiculizando as minhas tentativas de eloquência e concisão.
O que me parece estranho, no final, não é aquilo que eu estou dizendo ou deixando de dizer, mas o fato de o estar dizendo, de que fizessem o upload dessa vinheta em particular, a traduzissem, a cercassem de metadados, a preservassem para a posteridade, para que você a veja. Parece que essa ocasião tem algo a ver com o tema mais amplo de “performance e tecnologia”, um aspeto que nem sempre abordamos. Em Cultura e Valor, o filósofo Wittgenstein nos oferece o seguinte cenário:
Engelmann contou-me que quando ele revista uma gaveta em casa cheia dos seus manuscritos, eles lhe parecem tão esplêndidos que ele pensa que valeria a pena os disponibilizar para outras pessoas [...] Mas quando ele imagina publicar uma seleção deles a ideia perde o seu charme e valor e se torna impossível. Eu disse que era como o seguinte caso: Nada poderia ser mais extraordinário do que ver um homem que pensa que não está sendo observado realizando um simples #ato cotidiano. Imaginemos um teatro; sobe a cortina e vemos um homem sozinho dentro de um quarto, andando de um lado a outro, acendendo um cigarro [...] Com certeza isso seria estranho e maravilhoso ao mesmo tempo [...] Mas acontece que, de fato vemos isso todos os dias sem que nos impressione da menor maneira! Claro que é verdade, mas não o vemos a partir desse ponto de vista [...].
Wittgenstein continua e associa a obra de arte e a obra do pensamento como veículos idênticos para alcançar “esse ponto de vista”, simultaneamente “estranho e maravilhoso”. “Uma obra de arte nos obriga”, comenta Wittgenstein, “a vê-la a partir da perspectiva correta”. Wittgenstein e seu amigo Engelman empregam as tecnologias do seu tempo — a imprensa e o
#palco italiano — nas suas especulações sobre como chegar àquela “perspectiva correta” — talvez chamada de performance? Tentando chegar a sua forma mercurial, eles veem o cotidiano e comum se transmutar no fantástico e no de outro mundo, e depois voltar. Eles perseguem o esquecido e fracassado através do seu triunfo virtual diante dos olhos do mundo antes de retroceder, de repente, por trás da cortina. Empregar essa mesma força especulativa às ferramentas e redes do nosso dia e do dia depois de amanhã, parece ser um futuro para os estudos da performance que ainda está além do nosso horizonte.
Referências
Wittgenstein, Ludwig. 1996.
Cultura e Valor. Lisboa: Edições 70.
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