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What is Performance Studies?

Diana Taylor, Author

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A (in)traduzibilidade dos estudos da performance


A (in)traduzibilidade dos estudos da performance

Marcos Steuernagel, New York University Abu Dhabi

À medida que os estudos da performance continuam a se expandir nas Américas não-anglófonas, perguntas sobre o quão “americano” é um campo definido por uma palavra sem tradução exata (nem em português nem em espanhol) tornam-se inevitáveis. É claro que eu uso “americano” aqui consciente das complicações que esse uso gera. Eu preferia usar “estadunidense”, uma palavra que existe em português e espanhol mas, sintomaticamente, não em inglês. O principal motivo, no entanto, de escolher “americano” é porque é essa a palavra usada e reiterada por vários dos próprios latino-americanos ao discutir as dimensões políticas das genealogias desse campo. Ao invés de tentar encontrar soluções descomplicadas para a (in)traduzibilidade dessas palavras, eu prefiro seguir os conselhos de Diana Taylor, que encerra o seu ensaio “Atos de Transferência” — incluído nesse livro digital — propondo que partamos da premissa de que “não nos compreendemos uns aos outros”. Ela argumenta que “o problema da intraduzibilidade [...] é na verdade positivo”. Quão gringos são, então, os estudos da performance, e que diferença isso faz?

Obviamente, “performance” não é a primeira palavra estrangeira usada para descrever práticas corpóreas nas Américas. “Teatro” e “dança/danza” também já foram palavras portuguesas ou espanholas se esforçando — e falhando — tanto quanto em compreender o que nós hoje chamaríamos de práticas de performance dos povos indígenas pré-Conquista. As raízes etimológicas da própria palavra “performance”, como Diana Taylor também aponta, não vêm do inglês, mas do francês. O quanto precisamos voltar no tempo, então, antes que deixe de fazer diferença se “performance” enquanto palavra (e os estudos da performance enquanto campo) é estrangeira, versus teatro brasileiro ou dança colombiana, por exemplo?

Essa é uma das muitas maneiras em que a plataforma Scalar (sobre a qual desenvolvemos O que são os estudos da performance?) mostra-se particularmente produtiva. Ao invés de tentar traçar as origens do que seriam os estudos da performance, a multiplicidade de ensaios, tags e entrevistas neste livro é uma tentativa de replicar o que Michel Foucault descreve em “Nietzsche, a genealogia e a história” como o trabalho do genealogista: “marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona”. Nesse conhecido ensaio, Foucault rejeita o emprego metahistórico de significações ideais com o propósito de construir teleologias indefinidas, propondo ao invés disso que o trabalho do genealogista não é a procura por origens, mas a descrição meticulosa de proveniências e momentos de emergência. Eu proponho que a multiplicidade de maneiras de ler O que são os estudos da performance? nos oferece uma alternativa digital para os “pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” que Foucault identifica como as ferramentas do genealogista. A questão não é que não há resposta para a pergunta que o título deste livro propõe, mas que a genealogia com a qual ele responde é antes “um conjunto de falhas, de fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam instável”.

Isso não quer dizer que os estudos da performance latino-americanos—se é que se pode falar de tal coisa—não enfrenta uma série de contradições. O leitor precisa apenas navegar aleatoriamente pelas muitas entrevistas neste livro para encontrá-las. Mas não são essas inconstâncias a marca do campo em si? Talvez seja exatamente quando os estudos da performance são forçados a cruzar fronteiras nacionais, culturais e linguísticas, quando as palavras falham um pouco em se aplicar às práticas com as quais elas se relacionam, que ele é bem sucedido. Talvez o fato de os estudos da performance estarem sempre “fora-de-lugar” na América Latina possa ajudar os genealogistas a localizar a história nos lugares que Foucault identifica como os mais inesperados: “os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos”. Esse mapeamento afetivo das diversas genealogias dos estudos da performance na América não-anglófona começa a vir à tona ao ouvirmos a voz de Zeca Ligiéro descrevendo como ele foi acusado de ser “nostálgico” por usar a palavra “performance”, uma palavra que seus críticos associavam com a prática da performance arte nos anos 1970. Ou quando Ligiéro descreve o estranhamento de acadêmicos brasileiros por ele usar uma palavra “americanizada” em relação às práticas ameríndias ou afro-brasileiras.

É também o formato digital de O que são os estudos da performance? que nos permite ver que, assim como não há uma só reposta para a pergunta, não há uma só língua na qual perguntá-la. As legendas e transcrições trilíngues ajudam a demonstrar que perguntar em português ou espanhol é perguntar diferente. Conforme Diana Taylor menciona em sua entrevista, a concepção do teatro latino-americano segue modelos coloniais. O conceito de “performance”, entretanto, permite a inclusão de “grupos que normalmente não são representados”, englobando “o teatro, o ritual, a dança e a performance pública”. É claro que isso é verdade para os estudos da performance em geral, mas é ainda mais relevante na América Latina, onde as profundas conexões entre os sistemas de validação de práticas corporais locais e a aparente superioridade dos modelos coloniais são tão agudas. Livros sobre a história do teatro nas Américas lusófonas ou hispanófonas, por exemplo, tendem a estar cheios de teleologias de origem, geralmente ligadas a datas nas quais certas práticas europeias emergiram em cada país. Perguntar sobre a “performance”, por outro lado (não apesar de, mas precisamente por causa da ampla gama de usos dessa palavra nos países anglófonos) torna possível uma multiplicidade de proveniências e emergências que desafiam o peso colonial que “teatro” traz consigo.

Outro lugar em que a especificidade de cada genealogia se torna evidente é nos diferentes departamentos em que se praticam os estudos da performance. Enquanto nos Estados Unidos há uma tendência de criar novos departamentos para cada novo campo de estudo, na América Latina essa produção acadêmica tende a acontecer em departamentos mais tradicionais, como de teatro, de letras, ou de ciências sociais. Essas trajetórias não são arbitrárias, mas revelam histórias de influências. Javier Serna discute as tensões de trazer os estudos da performance para o campo dos estudos teatrais no México, uma vez que o conceito de performance “estava associado basicamente às artes visuais”. Anabelle Contreras Castro discute os estudos da performance como uma oportunidade de mudar a direção da escola, que estava focada “exclusivamente para o teatro”.

Ao discutir o caso do México em sua entrevista, Antonio Prieto articula de maneira bastante precisa a conexão entre essas tensões interdepartamentais e as influências europeias e estadunidenses sobre a academia latino-americana. No caso do México “pesquisadores dos campos da linguística, da antropologia, da sociologia”, Prieto argumenta, “aparentemente estão mais abertos a adotar a terminologia da performatividade”, enquanto nos estudos do teatro, onde há “uma conexão genealógica mais clara e direta com os teóricos franceses, alemães e italianos”, há mais resistência. Prieto não é o único a apontar a genealogia dessas tensões. Leda Martins descreve em sua entrevista as tensões no Brasil entre “os estudos da performance dos Estados Unidos [...] particularmente de Nova York”, e a influência da etnocenologia francesa. Algo que se torna claro na história que Martins conta, no entanto, é que essas influências não são simplesmente teorias importadas, mas que as conexões acontecem por causa do trabalho que já existe, um ponto que Beth Lopes também reforça em sua entrevista: “Eu vejo que isso já existia antes de se conhecer essa abordagem estadunidense [...] o que emerge, o que vem ao encontro dessa perspectiva conceitual, são fontes que já existem.”

Embora o lugar mais comum para os acadêmicos dos estudos da performance na América Latina seja em departamentos de teatro, existem também genealogias claras em outros campos, especialmente nas letras e nas ciências sociais. Nesse sentido, a diversidade de O que são os estudos da performance? também possibilita diálogos que, caso contrário, não necessariamente aconteceriam. Soledad Falabella, por exemplo, é clara em afirmar que sua experiência com os estudos da performance no Chile vem da perspectiva da literatura, e que essa genealogia não se mistura com os estudos da performance que vêm das artes visuais, uma genealogia “que se identifica com uma cultura mais anglo e vinculada à Inglaterra e aos Estados Unidos nos anos 60 e 70”, na qual ela situa o trabalho do CADA. Rossana Reguillo, por outro lado, explicita “um certo incômodo, uma certa posição de vergonha diante do que implicaria para as ciências, chamadas ‘formais’ nas ciências sociais, a incorporação dos estudos da performance como uma dimensão mais séria” no México.

Um dos motivos desse incômodo é a confusão por toda a América Latina entre os estudos da performance como campo do conhecimento e a performance arte como prática artística, uma questão que vários dos acadêmicos de diferentes países levantam em suas entrevistas. Antonio Prieto nos lembra de como, no Encuentro de 2001 do Instituto Hemisférico na cidade de Monterrey no México, “havia muita confusão, exatamente porque as pessoas não sabiam como distinguir entre ‘performance’ [...] e os ‘estudos da performance’”. Essas confusões, é claro, são extremamente produtivas. Conforme Rossana Reguillo desenvolve na sua elaborada análise da confusão entre os gêneros da performance em espanhol (“el performance” ou “la performance”?) nos lembra, a confusão gera “titubeios de incômodo” que estão relacionados à “quase impossibilidade de caráter epistemológico de limitar com um artigo algo tão complexo”. Mas nos depararíamos com isso se não titubeássemos? E como titubearíamos se a performance não fosse tão deliciosamente intraduzível?

É nessas falhas de comunicação que o genealogista trabalha, não para emendá-las, mas para insistir na necessidade de continuar traduzindo. Contanto que os estudos da performance anglófonos também insistam em traduzir Leda Martins explicando o porquê de, no Brasil, o termo mais amplo não ser “performance” mas a “corporalidade”, ou Diamela Eltit insistindo em descrever o movimento estudantil chileno como “performático” ao invés de “performativo” (o que nos traria de volta para a linguagem), eles também podem aprender a titubear. E ao titubear, pode ser que eles possam compreender o que Jesús Martín Barbero quer dizer quando fala que os estudos da performance seriam para a América Latina um “lugar teórico, metodológico, estratégico para pensar essa multiplicidade de conflitos que atravessam o corpo”. Afinal, o trabalho do genealogista é descrever histórias, não como uma sequência de eventos ordenados e traduzíveis, mas como eventos inscritos sobre o corpo que escapa à tradução.


Referências

Foucault, Michel. 1984. “Nietzsche, a genealogia e a historia.” In Microfísica do Poder, 4 ed, 15-38. Rio de Janeiro: Edições Graal.

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